Renascimento?

Corri à casa de meus pais e me abracei ao gato amarelo pela primeira vez em anos. Toda vez que lá ia ele me sondava, se passando entre meus pés, mas eu nunca lhe concedia maiores afagos. Desta vez fui eu quem o procurei. Se aquecia ao sol do meio dia, esparramado no quintal, e mal notou minha chegada. Ergui do chão a bolota felpuda e brilhante, de nove quilos, colando-a ao peito com angústia. Ele não me rechaçou; ao contrário. Ronronava como se se esperasse por isso também há muito tempo… Aninhou-se ainda mais entre meus seios, abrindo as patas dianteiras para me retribuir o abraço.

Fechei os olhos e deixei que as lágrimas tombassem. Há quanto tempo eu já estaria vencida como se soubesse a verdade? Sim: havia lido Fernando Pessoa dias antes e vinha meditando os versos tão famosos. Hoje se diz depressão; prefiro imaginar que consiga ver o antes, o agora e o depois, o dentro e o fora, enquanto conheço-me a mim mesma sem qualquer dor ou prazer. Esgotei todas as esperanças de propósitos, mas a vida continua. O coração bate por desejar algo mais?

Sim, criei todas as ficções que me inventaram. Todos os livros que escrevi sopravam baixinho a minha estória. Cada quadro era um espelho que me maquiava sem que eu erguesse as mãos. E agora? O que resta de todas as certezas, para onde seguir após ter atravessado todos os abismos? Não há um dia em que eu não ria de algum novo mistério de outras eras – “nada de novo sob o sol”. As pirâmides caminham conforme a Terra se perde pela galáxia. Quando paramos? Tenho envelhecido demais pra ser tão jovem.

Então o gato amarelo me encarou. Pensei que sorrisse, mas não… Compreendia, talvez, como todo silêncio. Esperava. Aos poucos serenei, como se convencida. Até que ele saltou rumo ao pote de água, tomou alguns goles e agitou a cabeça como faz todo gato. Deitou novamente ao sol, agora diante de mim, como se nada houvesse acontecido. Pareceu-me que brilhasse ainda mais. De algum modo talvez fosse um sinal?

XXXVII

não quero lhe falar meu grande amor
das coisas que hoje nada digo
e frustrada me calo
porque amo a vida apaixonadamente
bem mais que a ti, reles estalo

a cerveja quente que fica no copo
vai pro ralo, e a gente paga mesmo assim
adeus, enfim, e quando então
mais hora, menos hora uma saudade
daquelas me tragar a vida
terei sentido sem sentidos
o que valeu pra mim
tua insensatez

 

XXXV

descansa teus olhos; ainda podes
como poucos relaxar o que te assombra
e esquecer as retinas fatigadas
as mãos pesadas
os braços fugidios
teu corpo esquiva-se: deixa
não corra atrás
não assujeite
teus dias não serão mais bem levados
em belos trajes de carne
ou sem eles
descansa-te a ti mesmo
joga a chave fora
dá à porta as costas
não à vida
não aos teus eus adormecidos

XXXIV

mente que mente
mente que vaga
mente jamais calma
escancaro-me em mim
desabrochada
e são tantas vias
são tantas flores
são tantas águas
que sempre as quero voltas
nunca fecho nem retas
que me retranquem
no viver como era
assim, sempre assim
todo dia do princípio ao fim
de mim
tempo meu que não foi
dilatou, expandiu
me fugiu e explodiu
meu amor
meu vazio

XXXIII

socorro!
uma novação, por favor!
não; calma. não assim
não qualquer
não por nada
uma novação; entende?
sim, tem razão
o que tenho feito?
num só dia não conto
acredite
andei espiando
olhando ao redor
tentando flagrantes
surpresinhas que fossem
e então
quando mais esperança cozia
quando mais claridade enxergava
as mesmas nuvens voltaram
desexplodiram do sol
e não soube espantá-las com a mão
tem razão
é pena, tédio meu
tem razão

XXXII

meus olhos se derramam por teu corpo
como a lava pela encosta, desabada,
que se pega e crava, devorando
a vida, requeimando a pele
renascendo tórridos
torrentemoinha

anjos do inferno, celestiais demônios
cá dentro engalfinhados todos
em sanguinária, horrenda
impiedosa batalha convulsiva
atirando-me a urrar ora em teus lábios
ora a teus pés ou à fúria que consome
arrebata e adormece corpos estafados
extáticos no abismo do prazer
a lava pulsa, meus olhos calam
banalidadezinhas

XXXI

 

meus sóis desabrocham mansos
sorridentes, sonhadores
quase sempre solitários
solidarizamo-nos, cirandas
que somos, assanhados
por vezes, insensatos
frente à sanha
avassalante desse mundo
sem sabores nem razões
soterrado
meus sóis se esgueiram sôfregos
respiram complacentes,
sereiosos, passarébrios
neste céu de nuvens safas
que sonhei-me sem sentidos
sem saudades

XXX

 
botei fogo em minha biblioteca
e no lugar plantei um jardim
onde moro há muita criança
carente de toda alegria e carinho
plantei brinquedos e flores
plantei chafarizes e amores
plantei presentes presentes
o que aprendi dos livros?
que não desabrocham flores
que não empurram o sol
que não brotam fontes
falsas pistas todos
desvios labirintosos
atalhos sedutores, sugadores
quem não se traga no oco do mundo?
em paz estejam
era tempo, mais que tempo,
de meus sinais inventar
meus mínimos, meus fracos,
meus barulhentos e alegres e quentes,
meus nascentes
minhas vidas e sóis
eu arrebol

XXIX

este vestido largo, desajustado,
desconfortável sempre,
não me pertence
não, me desmente

despi-me. nua
nova lua
divaguei livre
divaguei outra
divaguei por vontade?

sempre desconfio
desses meus instintos racionais demais
livres demais, bruscos demais
(eu tão demenos nesse mundo doido…)

olho pra trás e os panos caídos
que deveriam estar parados, jogados,
parecem me acenar, se não me acusam

retorno quieta, apreensiva
terei sentido medo de viver a vida?
bobinha
nostalgia é solução?

XXVIII

morreu a poesia
oh, que tristeza
morreu de inanição
tão deprimida
mal sabendo morreu
como gozar a vida

velaram-na muitos
tão inocente no diminuto
caixãozinho branco
de flores tantas
de todas as cores
amargas flores

choravam-na todos e todas
mal me aguentando retirei-me a um canto
meu sol congelara
e eis que quando iam fechar a tampa
a menininha rindo se levanta
e olha em volta, a danada: “pegadinha!”

XXVII

crepita lá fora a fogueira de sombras
sempre lá fora, sempre alheia, irrendentora
a devorar-me cá dentro, que o frio
da lava bruta arrepia, atropelo borbulhante.
sim, eu brinco sempre, claramentindo:
às vezes os sinais são também textos,
exibem-se complexos por falta de opção.
alguém intende (assim mesmo: in-tende)?
se à tua frente espalho dez canetas
ou gizes, e que cinco fossem,
pintavas o desenho qual querias
se quisesses (não mando nem quero; sorte).
se te presenteio sete balas
degusta-as se queres quando e onde,
à tua preferência, à tua ordem, comigo ou apesar.
fazes sempre o que queres dos sinais,
fazes sempre o que a ti te convidaram
se não permitiram, se não comandaram,
se não submeteram sempre que os intendes.
fazes porque fazes; és tua ficção e tua verdade,
teu fogo gélido, tua rocha incandescente.
exprimes: de dentro vem o mundo
o demais fora é aparência e resultado.
a propósito: já te miraste no espelho?

XXVI

outro dia encontrei a Verdade
me espantei, segurei
e sentamos juntas num bar
chope vai, chope vem
e soprou pra longe o receiozinho
dela de se abrir e me mostrar
perguntei tudo – quem era, donde vinha
pronde ía, o que queria e o que não
e então soube: calou-se e sorriu
tentei de novo pelas bordas:
e os deuses, o universo,
o mais e o menos, o tempo,
a vida e a morte, o antes e o depois,
o infinito, as estrelas, deus
e o diabo, a liberdade, tudo e nada, enfim
que é deles? que me diz?
ela gargalhou na minha cara!
(bebinha de tudo, é verdade…)
baixei a cortina da sobrancelha
espiei por cima, pros lados
meio amuada, possessa
quase entendi tudo
e deixei a conta pra ela
mal educada
isso não se faz

XXV

o tempo é uma bolinha doida
gargalhando de língua pra fora
fazendo estripulia
e zombando com caretas
dos caretas

não, não aquele tempo
o de todo mundo, de agora
de antes e depois e certo marcado
preciso irritante pontual esquizóide
o meu cá dentro, o meu desembrulhável
que atiro pra cima e pra baixo
pro lado em que estiver virada
na cara de quem me atazana
(vou morder sua orelha!)

a minha bolinha sacaninha
doida pra quicar em todo lado
safadinha
mesmo dormindo gira
nunca para

XXIV

faltam poemas
sim, faltam poemas que me digam
que me digam, eu disse,
que me digam a mim quem sou
quem venho sussurrando ser
quem me não faço a cada instante
faltam poemas, falta tudo
a palavra e o tempo se abraçaram
e se esqueceram de gerar
dormiram, não copularam, não gozaram
ainda não se descobriram em si mesmos
ainda não dançaram os olhos mágicos
faltam poemas, falto-me
contemplo um sol sem luz
a noite inteira

XVIII

a gente poeta porque a vontade é livre
quer ser dia e noite muito mais que tempo
a gente canta porque o sonho sangra
quer comer o fogo sem rasgar a carne
a gente diz porque o desejo é sempre
o próprio deus nos olhos do fundo do peito
a gente escreve porque a mão costura
o chão que falta e esmaga os perturbados pés
a gente vê porque o silêncio traga
porque a gente sabe o que na falta sobra
a gente faz porque viver é amar
a gente vive amando sem morrer

XVII

minha paz é um céu de estrelas doces
primeiro beijo ânsia
do primeiro amor

minha paz é um céu de nuvens mansas
criança chapinhando poças mornas
no quintal sem muros do mundo

minha paz é um céu de ventos bailarinos
tranquilos doidos revolvendo a solidão
birutas risos me guiando vida afora

minha paz é um céu repleto de alvoradas
todas brotadas no meu peito sem razão

XVI

três distintos cavalheiros
muito bem vestidos e sucedidos
ordenaram bebidas no café ao lado

“quando eu levantar daqui o mundo vai mudar
vocês vão ver” – gabava-se o primeiro
“tinha é que voltar a ditadura” – ria o segundo
ainda cheirando a fraldinhas
“a mulherada dá mole, eu vou pra cima”
rugia o terceiro, disparando piscadelas ao redor
gastaram uma nota preta, gargalharam a noite toda
e saíram abraçados gritando gracinhas para os postes
só faltou aparecer a TV, pedir-lhes a ajuizada opinião
e arrematar a chamada em mais um arroubo de conservilismo
emotivo, complacente, conformadinho

e eu aqui esperando um príncipe
passando compra atrás de compra
contando os minutos pra enfrentar mais quarenta de ônibus
ô paisinho de futuro brilhante!

XV

queria não ter de dizer nada
nem de escrever nada
nem de pensar nada
queria que soubéssemos todos
quanto somos todos crianças e ridículos
simples crianças e ridículos sempre
e assim deixaríamos de ser crianças e ridículos todos
teríamos nos perdoado facilmente
teríamos sorrido todos do comum desespero
teríamos enxergado todos a única incerteza
teríamos vivido o mesmo segredo
mas não queremos nem conseguimos
nem sorrimos nem vivemos
e nos mantemos todos crianças e ridículos simples
carecemos da mentira como de sangue
carecemos de eus e diferenças
de certezinhas fabricadas para apodrecer amanhã
vivemos de dizer como respiraramos
e todas as palavras não perfuram o mais escuro dos silêncios

XIII

ei você sim é você mesmo
por que sou uma estranha pra você?
por que você é um estranho para mim?
por que a gente não inventa de novo diferente
oi tudo bem sou amanda e você como vai?
por que a gente não pode ser feliz
simples feliz como árvore que dá sombra a toda gente
e chuva brincalhona divertida na enxurrada?
por que a gente não pode ser assim só assim?
por que a gente quer tudo complicado
malditamente complicado
estupidosamente complicado?

lembra: dos cemitérios o mundo é o cemitério
trejeitos alheios enlouquecem
vestidos alheios encarceram
sapatos alheios atam
pensamentos alheios matam

lembro
meus pés cansados de bater mundo
meu coração calejado maior que o mundo
tudo vêem e não mais choram
e ainda não sorriem
não posso ir embora de mim nem desejo
só espero e só queria que um dia
as mentes desabrochassem
a gente vivesse em paz
assim assim
é pedir muito?
sei, doidei

XII

da escuridão nasce a luz
do orgulho o medo
da calma a coragem
não há fruto sem árvore
nem árvore sem chão

meus olhos vagam pensadores
tragam poentes e alvoradas
maiores do que mundos tantos:
pousados onde, se meu coração explode
se turbilhão sou, se nuvem de chamas
se me desfiz sem me encontrar
nem me perder, a cada dia tanto menos eu
tanto mais talvez, sempre um rasgo raso?

XI

tenho nada não a dizer
e digo sabendo bem por que
meu peito é uma guerra diadorina
entra a fé quelemém que não mais tenho
e o abismo riobaldo que me esmaga
luciferina luz que me arrebata
trevoso deus sem olhos que me traga
meu ser tão pequeno destroncado
minha rosa sem redoma urucuiana
meu amor sem razão, só incerteza
beleza sem véu, correntes lágrimas

X

quanto silêncio diria tudo?
quantas palavras seriam nada?
quantas metáforas me fazem viva?

sou apenas um grito calado
sem deus nem verdade
e afogada em minha fontezinha
borbulhante de todos os dias

nuns tenho de arrancar as palavras do fundo
noutros saltam-me da boca pirilampas
e toda a minha beleza é o chocolate quente
na garganta fria
sou sol de madrugada
luar ao meio-dia
universo e caos a todo instante
deusa demoníaca de sempre

as árvores da rua são a alegria dos pedestres
nos dias tórridos
a marquise da loja é a salvação da chuva
mas cá dentro há livros demais
e tão poucos sonhos como a morte jamais imaginou
despedidos

VII

hoje ele apareceu na loja de novo
e meu coração voltou a ter treze anos
(quando não teve, aliás?…)

terno riscado, perfume único
que não reconheci (e sou boa nisso)
cinco minutos de busca
e dois livrinhos pagos
no caixa bem ao meu lado

não levantou os olhos em momento algum
mesmo quando me inclinei para a minha colega
pedindo sem razão a caneta emprestada
é tímido ou tapado ou ambos
uma pena

ah! coraçãozinho bobo
por que tanto? por que tão forte? por que ele?
você me pergunta
e todas as minhas respostas são tão confusas e tolas

gostará de poemas? lerá este um dia?
mas poderá ser tarde
serei outra e ele será também outro
com tantos outros no meio
só pra me desorientar mais um pouquinho
quase nunca os tempos fazem um mesmo sempre

mas vamos em frente
acalma-te e aguarda
todo dia tem sua alvorada

VI

dias há em que meu querido chefe
entorna vinagre no café da manhã
mas como o aluguel vence hoje
e meu terapeuta precisa viver também
destranquei os dedos e atendi mais um cliente

louquinha, louquinha
viraste por acaso terrorista?
abana essa idiotice enfumaçada
e sê apenas bem mais inteligente
mas cá entre nós, que não me ouçam
um alarminho falso e irreverente
uma salvaçãozinha no meio da tarde
que me mandasse pra casa mais cedo
era a alegria de flores ganhas de surpresa

V

são tantas as razões que me atrapalham
são tantos os terrores que me impelem
são tantos os desejos que me afastam
que mandei às favas todas as coisas
algumas pessoas e esses eus que me azucrinam por demais
livros cheirando a vento, palavras-lava
sonhos de balanço no quintal da vida
eis todo o meu nada
vê: ali o muro, ali a montanha de sorvete
brincas também, meu bem?

IV

tenta ser
tuas palavras ensombram o passado
no futuro que não sonhaste presente

tenta ver
tuas mãos nunca tocam quando pegam
teus pés jamais erram quando andam

tenta ler
tua fuga é o medo que te caça
das soleiras das manhãs que paralisam

tenta tenta sempre um pouco mais
teu sono é leve porque não é sono
tua vida é leve porque a levas vaga

II

tenho um computador que me esconde
canetas mágicas que não me deixam mentir
e nada disso me importa
queria unhas por fazer e cheias de terra
vestido largo e pés livres
cabelo enfeitado da grama seca
onde cochilava a braços abertos
lembrança das formiguinhas em fila
carregando migalhas de folhas
da aranha balançando na teia
porque o fim de tarde era morno
e a água do riachinho era fria
mas o meu chefe não tem senso de humor